
onze da noite de quarta-feira dia nove de Dezembro. vim sozinho ao Tuzrakter. não quis ligar-te, quis ter a sorte de te descobrir por acaso num sofá qualquer destes. dei a volta à sala. nem sinal de ti. vim até ao páteo, sentei-me, puxei do diário gráfico, peguei na caneta. vou ver se te encontro aqui, num traço negro de zero vírgula dois milímetros. porque não? ou a mim, também dava jeito encontrar-me hoje.
sinto um toque nas costas, viro-me, e um homem com os seus sessenta bem vividos fala-me algo em magyar. atiro um “only english” com esperança de voltar ao meu monólogo tranquilo, mas sou surpreendido com a resposta british de um húngaro a viver em Bristol. a conversa escorre de uma figura corpulenta e grisalha, empática e consistente. começa por adivinhar a minha recente chegada há três meses. (como é que sabe que eu não estou aqui só de passagem?). de Portugal conhece a revolução dos cravos, o Soares, o futebol, o poeta Pessoa. nunca cruzou a fronteira porém. diz que era reaccionário com a minha idade. conta-me a lição do goulash. um casal tenta sobreviver em comunhão numa época difícil, e com os alimentos disponíveis a mulher prepara as refeições. faz um goulash. ao fim de uma semana continua a fazer goulash e o marido questiona a falta de alternativas. a mulher responde que pega nos alimentos com a intenção de fazer outra coisa mas, inexplicavelmente, acaba sempre por sair goulash. há um tom esquisito com que ele pausa a conversa. uma contracção estranha de gestos que parece suster uma lagoa de emoções. os olhos brilham e evitam comovidos um eventual reconhecimento qualquer. ele fala de forças. da poesia, da arte, do mundo. dirige um role heterogéneo de actores, faz teatro apartir da colisão entre profissionais, estudantes e amadores. escolhe palcos temperados pela natureza. Leningrado, Paris, Marrocos. tudo nele transparece uma verdade de coisas invisíveis. uma convicção no poder de sentir e apeender a vida. uma energia inominável, indomável e liquefeita. citou versos, parafraseou pinturas. ele também desenhava. ele tem a vontade de criar coisas em trezentos e sessenta graus. prolongar o conhecimento imediato de uma coisa através de uma visão global dessa coisa, descobrir a essência e fixá-la num sumário espacial completo. orgânico. noto-lhe uma inquietude por ainda não ter inventado uma maneira de o materializar, de o mostrar às pessoas. ele insiste nessa coisa inexplicável e disforme, que se forma continuamente e nos permite moldar-nos a nós próprios e completarmo-nos. é a perseguição da vida dele. de jovem revolucionário a sexagenário comedido, mas sábio. humilde como é regra. confidenciou-me que no final damos de caras sempre com o mesmo goulash, é o desânimo de seis décadas numa sociedade humana promissora.
desabafou a sensação das oportunidades reais, escassas, que o espera, e a mágoa de um filho que não conhece e não vê. limpou o meu caminho longo e largo das pedras que antecipo. fez-me evocar os meus pais. de repente o dilema da vida tornava-se meu. a minha identidade ascendente legitimava o serão. e a vida dele era um enorme aviso em reflexos neste charco de luz de dezembro. perguntou o que eu estudava. “arquitectura”, disse. ele continuou. “não, o que é que andas mesmo a estudar?”.
hei-de deixar esta terra de poetas a saber responder a isso.
5 comments:
o que que andas a estudar nelson? deves estar a estudar qualquer coisa..
é a vida imperfeita...
Kossonom por este post, Nelson!...(já não sei como se escreve mas soa assim).
arquitectura pode ser um erro, se calhar. Mas mais errado ainda, é ires ao tuzrakter sozinho.
beijo, beijo.
agradeço, sincero, os feedbacks* um bem haja
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