a crise está em mim. a crise sou eu.










Friday, December 11, 2009

ontem fui avisado para não ser arquitecto





















onze da noite de quarta-feira dia nove de Dezembro. vim sozinho ao Tuzrakter. não quis ligar-te, quis ter a sorte de te descobrir por acaso num sofá qualquer destes. dei a volta à sala. nem sinal de ti. vim até ao páteo, sentei-me, puxei do diário gráfico, peguei na caneta. vou ver se te encontro aqui, num traço negro de zero vírgula dois milímetros. porque não? ou a mim, também dava jeito encontrar-me hoje.

sinto um toque nas costas, viro-me, e um homem com os seus sessenta bem vividos fala-me algo em magyar. atiro um “only english” com esperança de voltar ao meu monólogo tranquilo, mas sou surpreendido com a resposta british de um húngaro a viver em Bristol. a conversa escorre de uma figura corpulenta e grisalha, empática e consistente. começa por adivinhar a minha recente chegada há três meses. (como é que sabe que eu não estou aqui só de passagem?). de Portugal conhece a revolução dos cravos, o Soares, o futebol, o poeta Pessoa. nunca cruzou a fronteira porém. diz que era reaccionário com a minha idade. conta-me a lição do goulash. um casal tenta sobreviver em comunhão numa época difícil, e com os alimentos disponíveis a mulher prepara as refeições. faz um goulash. ao fim de uma semana continua a fazer goulash e o marido questiona a falta de alternativas. a mulher responde que pega nos alimentos com a intenção de fazer outra coisa mas, inexplicavelmente, acaba sempre por sair goulash. há um tom esquisito com que ele pausa a conversa. uma contracção estranha de gestos que parece suster uma lagoa de emoções. os olhos brilham e evitam comovidos um eventual reconhecimento qualquer. ele fala de forças. da poesia, da arte, do mundo. dirige um role heterogéneo de actores, faz teatro apartir da colisão entre profissionais, estudantes e amadores. escolhe palcos temperados pela natureza. Leningrado, Paris, Marrocos. tudo nele transparece uma verdade de coisas invisíveis. uma convicção no poder de sentir e apeender a vida. uma energia inominável, indomável e liquefeita. citou versos, parafraseou pinturas. ele também desenhava. ele tem a vontade de criar coisas em trezentos e sessenta graus. prolongar o conhecimento imediato de uma coisa através de uma visão global dessa coisa, descobrir a essência e fixá-la num sumário espacial completo. orgânico. noto-lhe uma inquietude por ainda não ter inventado uma maneira de o materializar, de o mostrar às pessoas. ele insiste nessa coisa inexplicável e disforme, que se forma continuamente e nos permite moldar-nos a nós próprios e completarmo-nos. é a perseguição da vida dele. de jovem revolucionário a sexagenário comedido, mas sábio. humilde como é regra. confidenciou-me que no final damos de caras sempre com o mesmo goulash, é o desânimo de seis décadas numa sociedade humana promissora.

desabafou a sensação das oportunidades reais, escassas, que o espera, e a mágoa de um filho que não conhece e não vê. limpou o meu caminho longo e largo das pedras que antecipo. fez-me evocar os meus pais. de repente o dilema da vida tornava-se meu. a minha identidade ascendente legitimava o serão. e a vida dele era um enorme aviso em reflexos neste charco de luz de dezembro. perguntou o que eu estudava. “arquitectura”, disse. ele continuou. “não, o que é que andas mesmo a estudar?”.

hei-de deixar esta terra de poetas a saber responder a isso.

5 comments:

Mina Anguelova said...

o que que andas a estudar nelson? deves estar a estudar qualquer coisa..

Mike AppleTree said...

é a vida imperfeita...

Anonymous said...

Kossonom por este post, Nelson!...(já não sei como se escreve mas soa assim).

catarina capela said...

arquitectura pode ser um erro, se calhar. Mas mais errado ainda, é ires ao tuzrakter sozinho.
beijo, beijo.

nj said...

agradeço, sincero, os feedbacks* um bem haja